Texto: José M. Silva
Eis uma daquelas histórias que parecem feitas à medida para uma adaptação hollywoodesca. A odisseia do “cavalo impossível” de Leonardo da Vinci, que o empenho obstinado de um americano veio a transformar, já perto do final do século XX, numa realidade concreta e palpável.
Tudo começa em 1482, quando o duque de Milão, Ludovico Sforza (O Mouro), encomendou a Leonardo uma gigantesca estátua equestre para celebrar a figura do seu pai, Francisco Sforza. O que o duque pretendia não era apenas um monumento belo ou impressionante, mas algo de esmagador. Il Cavalo devia de ser a maior estátua alguma vez observada por olhos humanos. Apreciador de desafios difíceis, Da Vinci aceitou o repto e começou de imediato a trabalhar no colosso que teria, caso chegasse à fase final, sete metros de altura e 80 toneladas de peso.
Durante 17 anos, Leonardo dedicou-se ao projecto à sua maneira; isto é, de forma intermitente. Tão depressa fazia estudos anatómicos do cavalo, pensando na posição ideal que ele devia assumir (sobre as patas traseiras? em marcha? como se desmultiplicava em complexos cálculos de engenharia e no desenho de moldes que tornassem exequível a vontade de Ludovico. Isto quando não aceitava, em paralelo, outras encomendas – fosse de retratos (como o célebre Senhora com Arminho), fosse de frescos (como a ainda mais célebre Última Ceia, pintada no refeitório do Mosteiro de Santa Maria delle Grazie). Convém ainda ter presente que Leonardo acumulava, na corte dos Sforza, muitas outras funções; da defesa da cidade ao reforço das suas fortificações, passando pela criação de novas armas, pelo planeamento urbano, pelo divertimento literário das cortesãs e pela organização de banquetes, peças de teatro e festas.
Talvez estas distracções expliquem a razão de só em 1492, dez anos após o convite do duque, ter conseguido completar uma das fases mais importantes do projecto: a construção de um modelo com o tamanho real, em barro. Todavia, este modelo estava condenado a ser, durante muito tempo, o símbolo da sua própria impossibilidade de prática. Isto porque, em 1494 Ludovico foi forçado a tomar medidas drásticas. Sentindo-se militarmente em risco, ordenou que o bronze destinado ao enorme equídeo fosse convertido em canhões.
Cinco anos mais tarde, quando Milão capitulou diante das tropas francesas, a história de Il Cavalo parecia ter chegado bruscamente ao fim. Ludovico Sforza foi afastado do poder. Leonardo fugiu para Mântua e o enorme modelo de barro serviu de alvo para a pontaria dos arqueiros invasores, homens insensíveis que o reduziram a um monte de cacos. Segundo alguns relatos da época, o autor d’A Virgem dos Rochedos nunca se terá recomposto da perda do seu Cavalo.
É aqui que entra em cena o elemento hollywoodesco. Em 1977, Charles Dent, piloto da United Airlines na reforma, leu de fio a pavio um artigo da revista National Geographic sobre Leonardo e o monumento a Francisco Sforza. O fascínio pelo “cavalo que não chegou a ser” foi imediato. E logo uma ideia se impôs na sua cabeça: cumprir a loucura de Ludovico e Da Vinci, tantos séculos depois.
Sem nunca baixar os braços perante as inúmeras dificuldades com que deparou, Dent, ele próprio um escultor nos tempos livres, criou uma fundação e rodeou-se de especialistas na obra de Leonardo. Estudando os esboços que sobreviveram – nomeadamente os do Codex Madrid, descobertos em 1966 – e recorrendo à tecnologia actua, a equipa criou uma versão aproximada do que seria o monumento que Da Vinci tinha em mente.
Após 17 anos de dedicação, ao projecto, Dent morreu em 1994, sem ter visto, também ele, Il Cavalo de pé. Contudo, os seus colaboradores prosseguiram o trabalho, sob a orientação de Nina Akamu. E lá se montaram as 60 peças da estátua – contrariando as instruções de Da Vinci, que pretendia a fundição de um só bloco de bronze (ainda hoje complexa e tecnicamente impossível no século XVI). Oferecido a Milão, como agradecimento “do povo americano pelo génio de Leonardo e o legado da Renascença Italiana”, a inauguração do Cavalo aconteceu em 10 de Setembro de 1999, precisamente 500 anos após o triste dia em que os arqueiros franceses decidiram apontar flechas para um sonho.