Desidratação em Cavalos
Dr. Henrique Moreira da Cruz
Diz-se que um animal está desidratado quando o nível de água no organismo é inferior ao mínimo necessário para o normal funcionamento de todas as funções metabólicas. Neste artigo vamos explicar o mecanismo que conduz à desidratação no cavalo, as respectivas consequências, e principalmente como prevenir e/ou tratar a desidratação.
O cavalo, tal como todos os mamíferos, tem necessidade de manter a temperatura corporal constante dentro de limites rígidos (entre 37 e 39ºC). Isto é obtido através de mecanismos termoreguladores. Durante o exercício físico, os processos químicos envolvidos em fornecer energia para a actividade muscular produzem uma quantidade de calor significante, como produto secundário. Como resultado, a carga térmica a que o organismo estaria sujeito, se não tivesse capacidade para se libertar deste excesso de calor, seria tremenda, conduzindo facilmente a um estado de choque por sobreaquecimento (choque de calor ou choque hipertérmico).São três os principais mecanismos que o cavalo usa para se libertar do excesso de calor produzido durante o exercício físico (mecanismos termoreguladores):
1. a respiração rápida
2. a redistribuição da circulação sanguínea para a pele
3. a transpiraçãoEm certos animais, como por exemplo os cães, a respiração rápida é o principal mecanismo de libertação de calor; no entanto nos cavalos a respiração contribui para a libertação de apenas cerca de 20% do calor total, sendo a transpiração e a redistribuição sanguínea os principais mecanismos de dissipação de calor.
Durante exercício físico intenso um cavalo pode perder 10 a 15 litros de fluidos por hora. Para compensar estas percas, o cavalo tem necessidade de aumentar o consumo de água e/ou reduzir o volume de urina. Contudo, por razoes não esclarecidas, há vezes em que o cavalo não se rehidrata durante ou após um período de exercício, apesar de uma extensa perca de fluido. A sede é o mecanismo através do qual o corpo reconhece que tem necessidade de ingerir água. Os estímulos fisiológicos da sede são o aumento da concentração de sódio no plasma; e/ou um estado de hipovolémia, isto é, diminuição no volume de fluidos no sistema circulatório.O sódio é o principal electrólito no mecanismo da desidratação. O sódio existe no organismo dissolvido em água. Quando o organismo perde agua, a concentração de sódio aumenta, despertando um sinal que é transmitido ao cérebro com a indicação de que precisa de mais agua. Este é o mecanismo estimulador da sede.
O suor do cavalo pode ter uma composição em sódio igual ou superior à do plasma sanguíneo, dependendo do tipo e duração da actividade física executada. Isto acontece porque quando um cavalo transpira, as grandes percas de fluido são acompanhadas de uma certa perca de sódio. Posto isto, podem ocorrer duas situações:
Se o suor transpirado tiver uma concentração de sódio semelhante à do plasma, a concentração de sódio no plasma mantém-se constante. Nestes casos a sede é estimulada devido a diminuição de fluido no organismo. O organismo reconhece que precisa de mais água.Contudo, se o suor transpirado tiver uma concentração de sódio superior à do plasma, o que implica a perca de elevadas quantidades de sódio a partir do plasma, a concentração de sódio no plasma diminui. Quando isto acontece, o organismo pode não reconhecer o déficit de fluidos, pois proporcionalmente, em relação à água, o sódio esta diluído. Nestas circunstâncias, o mecanismo da sede não é estimulado até que se verifique uma diminuição severa no volume de fluidos no sistema circulatório, com consequências graves nas restantes funções metabólicas do organismo, nomeadamente no sistema circulatório e urinário.
Outros factores que podem afectar o equilíbrio de fluidos no organismo de cavalos durante o exercício físico são o modo como o cavalo bebe água e o maneio do cavalo durante o treino e/ou competição. O transporte, por exemplo, pode causar uma redução no consumo voluntário de água.
Além disso, há treinadores que por vezes restringem o consumo de água antes de uma prova, com a intuição de evitar que o cavalo carregue peso extra. Contudo, está cientificamente provado, tanto em cavalos como em atletas humanos, que a restrição de água antes de um período de exercício prolongado pode ser prejudicial por causar um estado de desidratação severo, que por sua vez reduz o volume plasmático suficientemente para afectar a dissipação de calor. Um animal desidratado não pode transpirar adequadamente. Uma das funções da transpiração é libertar o excesso de calor produzido durante o exercício físico. Se o cavalo não consegue transpirar adequadamente ao ritmo que o organismo produz energia calorífica, o animal corre elevados riscos de sofrer de choque hipertérmico, com consequências devastadoras, incluindo danos no sistema nervoso.Em relação ao modo de administração de água, estudos científicos demonstraram recentemente que os cavalos bebem consideravelmente mais água quando esta lhes é fornecida em baldes de água fresca a uma temperatura de 10 a 12ºC, mudada duas vezes ao dia, do que quando têm acesso livre e directo a bebedouros automáticos. Está também provado que, para compensar as percas na transpiração, uma solução salina isotónica contribui para a manutenção do volume plasmático e restituição da perca de peso de um modo mais distinto e duradouro do que simplesmente água. A escolha de uma solução de electrólitos para rehidratação é especialmente importante em cavalos submetidos a exercício físico várias vezes ao dia e/ou durante exercício de endurance (ie: raides), particularmente em condições de temperatura e humidade elevadas.
A alimentação do cavalo de competição deve conter um teor elevado de electrólitos (particularmente sódio e potássio) para compensar as percas causadas pela transpiração. Uma dieta de manutenção deve ser suplementada com um “bloco de sal” e/ou administração de electrólitos na água ou ração conforme o paladar do cavalo.
Note-se no entanto que existe uma grande variação individual no consumo voluntário de água entre cavalos. Posto isto, não se deve concluir que só porque um cavalo bebe menos que os seus companheiros está desidratado ou vai ser afectado por desidratação durante ou após exercício. O grau de desidratação e teor de electrólitos podem ser avaliados através de análises ao sangue. O ideal é colher análises regularmente para cada cavalo para determinar os valores normais para cada indivíduo. Deste modo uma ligeira alteração poderá ser detectada com maior sensibilidade. Por outro lado, tradicionalmente, o grau de desidratação é estimado clinicamente ao puxar uma prega de pele na tábua do pescoço ou, talvez um pouco mais exacto, na pálpebra superior. Se a marca deixada na pele não desaparecer ao fim de poucos segundos significa que a pele perdeu elasticidade por desidratação. Note-se contudo que este é um método bastante grosseiro e inexacto e como tal requer bastante experiência; deve ser avaliado, não isoladamente, mas em conjunto com uma avaliação clinica completa.
Outros parâmetros clínicos importantes são a frequência cardíaca e frequência respiratória, bem como a temperatura rectal, que permite avaliar o risco de choque hipertérmico.
Durante a preparação para os jogos olímpicos de Atenas em 2004, onde se previam condições climatéricas adversas de elevada temperatura e humidade, rigorosos estudos demonstraram que o método mais eficaz para prevenir o choque hipertérmico, ou choque de calor, é arrefecer o cavalo liberalmente após cada prova. Isto foi realizado eficientemente através de banhos múltiplos com água bastante fria (entre 1 a 4ºC) e aplicação de ventoinhas para permitir a evaporação do suor, e desse modo evitar a saturação do suor à superfície da pele, o que iria reduzir a capacidade de transpiração. O cavalo deve também ter acesso livre a água fresca. Estes métodos têm sido desde então aplicados com bastante sucesso em competições realizadas em zonas de climas quentes e húmidos, e estão certamente indicados para provas hípicas realizadas na Primavera e Verão em Portugal, sempre que as condições climatéricas conduzam a transpiração excessiva e risco de choque de calor.